Floresta, para que floresta?

Um repórter anda pelas ruas de São Paulo com microfone em punho. Para um transeunte qualquer, um moço apressado, de gravata e com o notebook nas costas, e lança a pergunta: “Você sabe em que bioma você vive?” A resposta tem uma lógica cristalina: “Na cidade”. Como ele, milhões de pessoas que vivem em São Paulo não sabem que a região onde a cidade fincou suas raízes é, na verdade, um pedaço do bioma da Mata Atlântica.

Da grande floresta encontrada pelos descobridores em 1500, e que cobria 15% do território brasileiro, com mais de 1,3 milhão de quilômetros quadrados, restaram apenas 102 mil quilômetros quadrados, ou cerca de 7% da área original. Assim como a Mata Atlântica foi quase toda arrancada da paisagem, outros biomas brasileiros também estão em risco pelo avanço da ocupação humana. É por isso que o país precisa de um Código Florestal, um conjunto de leis que garanta a preservação de áreas florestais e de biomas importantes para garantir a qualidade ambiental não apenas nas áreas rurais, mas também nas cidades, que de tão cinzentas e poluídas já dão a impressão de ser um corpo estranho, deslocado da natureza.

Quando os portugueses chegaram ao Brasil, no Século 16, seu principal interesse foi explorar uma árvore especial, de cujo caule sai uma seiva de cor rubra e que era usada para tingir a roupagem dos cardeais.

Histórico das Leis

O pau-brasil foi o primeiro eixo de exploração econômica das florestas. Durante três séculos ele foi superexplorado e quase chegou à extinção nas matas costeiras. Este cenário levou à criação da primeira legislação para coibir o uso abusivo dos recursos florestais. Em 30 de janeiro de 1802, foi baixado o Alvará de Regimento das Minas e Estabelecimentos Metálicos, o qual exigia ordem escrita da Administração das Matas e Bosques para a venda de madeiras e lenhas por particulares, ou para se fazer queimadas. Em 1825, uma nova lei passou a exigir licenças para o corte do pau-brasil, de perobas e de tapinhoãs, dando ênfase a madeiras utilizadas na construção. E, de 1843 a 1858, foram criadas leis relacionando as espécies florestais que não poderiam ser exploradas sem consentimento do Estado, neste caso a Coroa Brasileira. Nasce, então, o termo “madeira de lei” para as espécies florestais mais nobres do Brasil.

Uma tentativa de consolidar as leis, normas e costumes relacionados às florestas foi feita em 1934, ainda durante o Estado Novo, quando foi aprovado o Decreto n.º 23.793, já conhecido como Código Florestal, que a história conta que não deu muito certo e entrou para os rol das “leis que não pegaram” no Brasil. Em 1965, já na vigência de uma nova ditadura no país, foi montado um Novo Código Florestal, que explicitava o valor intrínseco das florestas e vegetações nativas, não importando seu valor comercial. Durante mais de quatro décadas essas foram as leis que definiram a relação entre o setor produtivo do agronegócio e as fronteiras florestais.

Este Novo Código foi além de tratar de espécies florestais: definiu o território da Amazônia Legal: “…Estados do Acre, Pará, Roraima, Rondônia, Amapá e Mato Grosso e regiões ao Norte do paralelo 13º S, dos Estados do Tocantins e de Goiás, e ao Oeste do meridiano de 44º W, do Estado do Maranhão”. Esta foi, também, a legislação que, a partir da década de 1980, passou por importantes ajustes. De 1981, é a legislação que regulamentou as Áreas de Preservação Ambiental (APA), classificadas para o uso direto dos recursos naturais, assim como as florestas nacionais, reservas extrativistas e as reservas de fauna, onde são permitidas a ocupação e exploração dos recursos naturais. Em 1989, foi finalmente qualificada a legislação sobre Área de Preservação Permanente (APP) – áreas de topo de morro e encostas com mais de 45 graus de inclinação, assim como as áreas de matas ciliares de rios, nascentes, lagos e outros cursos d’água – já presente no Código de 1965, mas que ainda carecia de regulamentação. E, a partir de 1998, foi regulamentada a Reserva Legal, que estabelece uma área em cada propriedade rural que deve ser preservada e seu desmatamento é considerado crime. Juntamente com o capítulo de Meio Ambiente da Constituição de 1988, essas leis se tornaram as principais garantias de preservação de biodiversidade florestal no país.

Mudar, para que mudar?

As alterações ocorridas na legislação florestal nas últimas décadas são o principal alvo das críticas feitas pelos representantes do agronegócio em relação ao Código. Praticamente sempre existiram tensões entre ruralistas e ambientalistas a favor ou contra mudanças. No entanto, esse debate se acirrou a partir de 2009, quando a Câmara Federal passou a trabalhar sobre o assunto e indicou o deputado Aldo Rebelo (PCdoB-SP) para ser relator da Comissão Especial sobre o tema. Nacionalista, Rebelo alegou em seu relatório, entregue aos deputados em junho de 2010, que há “pressões de entidades ambientalistas estrangeiras para impedir o desenvolvimento do Brasil em contraposição à expansão da agricultura e da infraestrutura do país”.

Rebelo alertou para a necessidade de ponderar sobre os interesses envolvidos na manutenção da atual legislação, que segundo seu relatório, “preserva mais os interesses econômicos de estrangeiros do que do Brasil”, e cita o exemplo da proibição da exportação de produtos florestais e ambientais, que segundo ele poderiam gerar riquezas ao país, mas que estão sendo embargados para a geração de renda no exterior por sua substituição por insumos estrangeiros. Já boa parte dos ambientalistas brasileiros critica a voracidade com que empresários do agronegócio avançam sobre as florestas para a implantação de pecuária e lavoura. “Hoje são 200 milhões de bois no Brasil e 40% disso está na Amazônia. Em 20 anos, 75% de um rebanho estimado em 300 milhões estará naquela região”, diz João Meirelles, pesquisador do Instituto Peabiru e especialista em desenvolvimento da Amazônia.

A proposta defendida por Rebelo prevê a flexibilização das regras de preservação a partir de análises de cada propriedade e do tipo de ocupação consolidada. Essas análises deveriam contemplar a viabilidade econômica, ou não, para a recomposição das áreas de reservas obrigatórias, dando espaço para o não cumprimento da atual legislação. Para as Áreas de Preservação Permanente, Rebelo sugere que as restrições de uso sejam mantidas de acordo com o regime atual, salvo aquelas de atividade consolidada, que serão alteradas após o Zoneamento Ecológico-Econômico promovido na esfera de cada Estado, obedecidas as exigências de estudos técnicos específicos.

Conflito de interesses

Um dos grandes embates foi a definição dos limites para a preservação de matas ciliares às margens de rios, lagos e outros cursos d’água. Inicialmente propunha-se a redução de 30 metros de largura para essas matas, para dez metros ou menos. No final, esta metragem foi ampliada na proposta de Novo Código Florestal, oscilando, dependendo da largura dos rios, de 15 a 30 metros.  “A alteração pretende reduzir o prejuízo aos pequenos proprietários em cujos lotes há presença de cursos d’água de pequena largura”, argumenta Aldo Rebelo.

A disputa por um novo Código Florestal tem nas organizações da sociedade civil alguns bastiões contra a flexibilização excessiva das regras. Do lado dos ruralistas, a senadora Katia Abreu (DEM-TO) tornou-se a voz em defesa da expansão do agronegócio. Para ela, o Brasil não pode limitar sua produção agrícola sob pena de não conseguir oferecer alimentos na quantidade necessária à sua população. Argumento considerado falso por outros especialistas. O economista polonês Ignacy Sachs, que estuda o desenvolvimento da América Latina, diz que o Brasil pode ser uma “potência da bioeconomia” sem desmatar mais. Ele defende um zoneamento econômico-ecológico de forma a destinar produtivamente os milhares de hectares já desmatados e hoje abandonados. “O Brasil é um dos países mais propícios à produção de biomassas. Isto tem de ser aproveitado como uma vantagem competitiva e não como desculpa para a destruição da biodiversidade que possibilita esse potencial”, diz Sachs.

Ainda em agosto de 2010, antes, portanto, das eleições, durante o lançamento do Movimento Empresarial pela Proteção e Uso Sustentável da Biodiversidade, em São Paulo, a ministra do Meio Ambiente, Isabella Teixeira, disse que pretendia elaborar uma nova proposta de alteração do Código Florestal. A ministra acredita que há radicalizações dos dois lados, tanto dos ruralistas como dos ambientalistas, e que é preciso buscar um meio termo, conciliar os interesses da sociedade e, também, viabilizar as metas defendidas pelo Brasil nas conferências de Copenhague (Dinamarca), onde ficaram estabelecidos os limites de emissão de gases estufa, e de Nagoya (Japão), onde foram acordados compromissos em relação à preservação da biodiversidade.

No momento em que o Brasil ganha uma nova legislação florestal, o importante é que as disputas se encerrem com compromissos claros por parte de ruralistas, governo e ambientalistas de que o Novo Código Florestal seja cumprido.

* Dal Marcondes é jornalista, diretor da Envolverde, passou por diversas redações da grande mídia paulista, como Agência Estado, Gazeta Mercantil, revistas Isto É e Exame. Desde 1998, dedica-se à cobertura de temas relacionados ao meio ambiente, educação, desenvolvimento sustentável e responsabilidade socioambiental empresarial. Recebeu por duas vezes o Prêmio Ethos de Jornalismo e é reconhecido como Jornalista Amigo da Infância pela agência Andi.

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