Guerra vinha nos desenhos (as akás, os canhões monacaxito), vinha nas conversas (“tou ta dizer, é verdade…”), vinha nas pinturas da parede (os desenhos no hospital militar), vinha nas estigas (“teu tio foi na UNITA combater, depois voltou, tava a reclamar lá tinha bué de piolho”), vinha nos anúncios da tv (“ó Reagan, tire as mãos de Angola…!”) e até vinha nos sonhos (“dispara Murtala, dispara porra!”) – Ondjaki, Bom dia camaradas (2001)
Daniel MordzinskiFoi assim, “imerso numa cultura de guerra”, que o poeta e escritor angolano Ondjaki vivenciou a infância na capital Luanda. Nascido em 1977, dois anos após a conquista da independência de seu país, Ndalu de Almeida – nome verdadeiro de Ondjaki – cresceu vendo as disputas pelo poder em Angola, à época assolada por uma guerra civil. “Acho que crescemos com esse ‘imaginário da guerra’, com o receio de que algum dia também fossemos incorporados pelas Forças Armadas”, admite ele.
Além de ser hoje um dos grandes nomes da literatura africana em língua portuguesa, vencedor de importantes prêmios literários e com livros traduzidos para mais de sete idiomas, Ondjaki é um exemplo vivo da geração angolana dotada de uma difícil tarefa: reconstruir um país abalado por décadas de violência e instabilidade política. E, não por acaso, decidiu fazê-lo por meio das palavras.
Nessa entrevista, concedida por email ao Portal Aprendiz, recuperamos os principais temas de Bom Dia Camaradas (2001), primeiro romance de Ondjaki, e pedimos ao autor que falasse sobre sua infância, as lembranças da escola e sobre como os anos de conflito armado influenciaram a educação angolana e, sobretudo, a sua formação. Para não descaracterizar as respostas enviadas por ele, decidimos manter o português angolano.
Portal Aprendiz – Quais são as recordações mais latentes do período em que você frequentou a escola? Quais eram as maiores dificuldades naquela época?
Ondjaki – As recordações são as melhores. Fui muito feliz na escola, realmente aprendi muito e a escola era também um lugar de extremo lazer, de aprendizagem de brincadeiras e do desenvolvimento de aptidões criativas.
As maiores dificuldades vejo-as hoje, à distancia, mas na altura pareciam coisas normais: alguma falta de condições, por exemplo, nenhuma escola pública tinha casa de banho[1] e algumas vezes, na 5ª, 6ª e 7ª classes, houve mesmo problemas de carteiras, muitas vezes não tínhamos onde sentar. Mas os professores não faltavam e eram muito bons. Era um ensino extremamente rigoroso e de alta qualidade. Todos fomos bem preparados
Portal Aprendiz – Seu livro “Bom Dia Camaradas” recria o ambiente da educação em Luanda no período pós-colonial. O que te motivou a ter o ensino como pano de fundo da obra?
Ondjaki – A própria estória (literária) que eu queria contar levava à história do país, de Luanda, às circunstâncias sociais e políticas daquela época. Não foi tão pensado enquanto projecto de livro, mas a minha realidade auto-biográfica, ela passa muito pela rua e pela escola. Qualquer projecto/estória relacionado com a minha infância tem que ver com a escola ou os espaços que eu frequentava. A nossa vivência, infanciosa, era basicamente constituída por três espaços sagrados: a casa (família), a rua (com os amigos) e a escola (colegas e professores).Tchissola, Lelinha, Ndalu, Kiesse e Dilo. Personagens de “Bom dia camaradas”.
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